EDITOR : ALEXANDRE FRANÇA
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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

"Nos bastidores da folia: os diversos 'papéis' do carnavalesco"

por Sérgio Rodrigues


PRA TUDO SE ACABAR NA QUARTA-FEIRA

(Compositor: Martinho da Vila)

A grande paixão, que foi inspiração do poeta é o enredo
Que emociona a velha guarda lá na comissão de frente
Como a diretoria
Glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão
São escultores, são pintores, bordadeiras
São carpinteiros, vidraceiros, costureiras
Figurinistas, desenhista e artesão
Gente empenhada a construir a ilusão

E que tem sonhos
Como a velha baiana

Que foi passista, brincou em ala
Dizem que foi o grande amor de um mestre-sala

O sambista é um artista
E o nosso tom é o diretor de harmonia
Os foliões são embalados
Pelo pessoal da bateria
Sonhos de reis, de pirata e jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira

Mas a quaresma lá no morro é colorida
Com fantasias já usadas na avenida
Que são cortinas,
Que são bandeiras
Razões pra vida
Tão reais da quarta-feira

(É por isso que eu canto...)


Este samba-enredo foi apresentado pela escola de samba Unidos de Vila Isabel em 1984, e conta poeticamente um pouco dos bastidores da elaboração dos desfiles carnavalescos, cuja efemeridade de cada apresentação contrasta com o persistente esforço dessa “gente empenhada em construir a ilusão” e que é responsável por dar forma, cor e movimento ao espetáculo.

Na condução dos trabalhos artísticos de uma escola de samba, tanto no contexto dos desfiles das agremiações cariocas e paulistanas (em que milhões de reais são investidos anualmente), quanto em outros bem mais modestos, como o carnaval de Uberlândia, encontramos a figura do “carnavalesco”. Para muito além da sua conotação foliã, o termo carnavalesco passa a indicar o profissional responsável pelo projeto e execução de um desfile, participando diretamente e indiretamente de quase todos os quesitos sob os quais uma escola de samba é avaliada no concurso anual de desfile.

Na história do carnaval temos carnavalescos que ganharam notoriedade midiática, como Joãosinho (é com “s” mesmo) Trinta, e na atualidade Paulo Barros, que reafirmam os adjetivos que comumente são atribuídos a estes profissionais de múltiplos talentos: criativos, ousados, inovadores, e até mesmo geniais, no sentido de que utilizam as diversas linguagens plástico-visuais que o carnaval engloba para desenvolver criações capazes de encantar e surpreender enormes plateias, e muitas vezes extrapolando o próprio caráter festivo dos desfiles, aproximando-os cada vez mais da Arte enquanto Espetáculo.

Cristo encoberto em meio aos mendigos do enredo “Ratos e Urubus larguem a minha fantasia”, assinado por Joãosinho Trinta na escola Beija-flor de Nilópolis em 1989.

Em 2004, Paulo Barros estreia no Grupo Especial do carnaval carioca, e se torna o carnavalesco mais badalado da atualidade com seu conceito de “alegorias vivas”, como este carro que representa o DNA.

Bem distante do status que o cargo adquiriu ao longo do tempo no carnaval dos grandes centros, meu interesse pelos desfiles carnavalescos cariocas e sua exuberante visualidade – enquanto amante do carnaval e pesquisador em Arte - abriu caminho para que eu me “aventurasse” como carnavalesco em uma agremiação uberlandense – a Unidos do Chatão - , apesar do meu total desconhecimento até então dos desfiles locais. Assim, em 2012, pude assistir na Passarela do Samba montada na Avenida Monsenhor Eduardo, pela primeira vez, um desfile das escolas da nossa cidade, com a peculiaridade de que era também meu “debut” como carnavalesco. Apresentamos o enredo “Rosas: expressões de Amor” e com ele fomos vice-campeões do carnaval.


Neste texto, meu objetivo é contar um pouco das minhas atribuições nesta função deliciosamente árdua de conceber e confeccionar um desfile carnavalesco em meio a uma gama de limitações de um “carnaval em desenvolvimento” como o de Uberlândia, onde a escassez de recursos e estrutura transformaram a frase do primeiro a receber a alcunha de carnavalesco na década de 60 - o professor de Arte Fernando Pamplona - em meu lema de trabalho: “É preciso tirar da cabeça o que não se tem no bolso”. Assim, relatarei algumas etapas de um projeto em curso, aventura de extrema responsabilidade, uma vez que eu e minha equipe estamos no auge da confecção do desfile 2013 do querido “Chatão”.

A primeira etapa do projeto é a definição do enredo a ser apresentado. Para os menos familiarizados com o universo carnavalesco, um enredo de escola de samba é desenvolvimento textual do tema a ser apresentado visual e musicalmente pela escola, que é geralmente delineado e argumentado pelo carnavalesco. Este ano escolhi o papel como tema para o desfile 2013, e o enredo tem o título “Do Papiro à Era Digital, o Chatão vem cumprir o seu Papel”.

* Imagem com a LOGO do enredo.

Muitos me perguntaram o porquê da escolha de algo tão banal, e aparentemente pouco carnavalesco. Para além da sua presença silenciosa no nosso dia-a-dia, o que me chama a atenção para o papel é sua vital importância ao longo dos séculos para o desenvolvimento intelectual da Humanidade, que adentra a Era Digital sem dispensar (pelo menos ainda) o bom papel nosso de cada dia. Paralela a roda, tida por muitos como a principal invenção do homem em prol de seu desenvolvimento material, temos o papel, uma invenção oriunda da nossa necessidade essencial em registrar e difundir ideias: o frágil papel que se tornou o pilar de nossa evolução mental.

A história do papel, que caminha paralelamente à história do Homem é recheada de fatos pitorescos, passando por povos de estéticas bem peculiares que darão corpo ao nosso desfile, até chegarmos à atualidade, quando apontaremos as diversas aplicabilidades deste material.

Ao término de nosso desfile, deixaremos no ar as seguintes indagações: qual será o futuro do papel no decorrer da Era digital? Será que o Papel vai perder o seu papel?

(Conheça a sinopse do enredo da Unidos do Chatão no blog:HTTP://festejarcomvoce.blogspot.com)

Assim, o trabalho do carnavalesco inicia-se com a pesquisa histórica para desenvolvimento teórico do enredo, buscando conteúdos referências visuais que irão incorporar a estética do desfile.

Este enredo foi repassado aos compositores do samba-enredo (música cantada repetidamente durante o desfile e que deve contar de forma resumida o enredo em desfile, comunicando-o verbalmente), ao mesmo tempo em que inicio a realização dos croquis das fantasias, adereços e carros alegóricos que irão comunicar o enredo visualmente.

O enredo é dividido em subtemas, que serão representados por alas (cada agrupamento de pessoas com mesma fantasia), carros alegóricos, destaques, enfim, páginas e capítulos de uma história em movimento diante do espectador.

A elaboração dos croquis é um momento de criação riquíssimo do qual não abro mão de desenvolve-lo apenas na companhia inseparável do papel e lápis, apesar do grande volume de desenhos que requerem, no caso dos carros, de algum conhecimento técnico estrutural.

Produzindo os croquis para o carnaval 2013. Ao fundo, uma pintura que o artista expôs numa exposição coletiva em 2012.


É neste momento que as formas e cores e materiais, alem de visualmente interessantes, tem que ser pensados por múltiplos critérios: legibilidade dos significados do enredo, potencialidade de confecção (ou seja, de que adianta um belo projeto de uma alegoria flutuante se a gravidade ainda não me permite executá-la?), conforto ao desfilante (no caso das fantasias, pois não se pode perder de vista que serão utilizadas em movimento, e que os componentes estarão cantando, dançando e, sobretudo, sendo avaliados nestes itens de julgamento), e dadas as condições financeiras, o custo-benefício de cada peça criada (sem dúvida o fator mais limitador, mas que nos leva ao exercício da criatividade).

Do papel ao real, os croquis começam a ganhar vida na mão das costureiras, dos aderecistas, dos serralheiros: é preciso muita conversa, muita explicação, muita organização, pois quando outras pessoas são inseridas no processo, a comunicação se torna a ferramenta que necessita de maior precisão.

São confeccionados os protótipos, primeiras peças daquilo que necessitará ser multiplicado, e nesta etapa algumas alterações do projeto inicial inevitavelmente serão realizadas, o que não significa, necessariamente, uma perda, muito pelo contrário: o contato com os materiais vão delinear pertinências, abrir novas possibilidades, e sempre com o foco na legibilidade e no resultado visual no conjunto do desfile, as adaptações enriquecem o processo, abre para a participação coletiva, permitindo que toda a equipe contribua também no processo criativo, todos “voando na mesma asa”. 

Protótipo do adereço de cabeça com o qual a ala das baianas da Unidos do Chatão desfilou em 2012.

Afinal, é impossível realizar sozinho todo um desfile, e por isso conto com uma equipe muito dedicada e talentosa, composta por amantes do carnaval, artistas, profissionais de áreas específicas, pessoas da comunidade, que dedicam tempo e energia nessa já dita “deliciosamente árdua” missão, que é entregar um desfile pronto para ser vivenciado e consumido em 60 minutos.

Artista plástica Flaviane Malaquias, que integra a equipe do carnavalesco Sérgio Rodrigues, desenvolvendo pinturas representativas dos papiros egípcios, que irão compor uma das alegorias do desfile 2013.

Apesar da linearidade das etapas do projeto apresentadas no texto, muitas das coisas acontecem concomitantemente, sobretudo na fase final da produção, quanto o tempo exíguo exige um esforço extra de todos os envolvidos. Lidamos a todo o momento com eventualidades, e a necessidade de busca por novas soluções para novos e velhos problemas é um exercício diário.

Conceber o enredo, pesquisa-lo e projeta-lo, gerir equipes, coordenar funções, administrar o fluxo de materiais (uma das maiores dificuldades que encontramos é a ausência de uma única loja na cidade que forneça determinados materiais de consumo constante no barracão), atender sempre que possível os anseios da comunidade e dos desfilantes, estar atento aos custos envolvidos (acreditando no milagre da multiplicação das receitas), produzir muito, pois o fazer também é uma atribuição que não posso abdicar, preparar o material a ser entregue aos jurados, eis o conjunto de minhas atividades, resumidas na alcunha “carnavalesco”.

E pra não desprezar o sentido mais amplo do termo, exercitarei meu lado carnavalesco desfilando como um dos destaques da escola, como fiz no desfile das campeãs de 2012, quando substitui um faltante.


Encerro contrariando o samba de Martinho da Vila, pois afirmo que, pra quem vive o carnaval dos bastidores ao desfile, é IMPOSSÍVEL que tudo termine na quarta-feira...


Sérgio Rodrigues é artista plástico natural de Uberaba, graduado pela Universidade Federal de Uberlândia no curso de Artes Plásticas em 2009. É também arte-educador, decorador de festas e carnavalesco na cidade de Uberlândia. 



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