por Ingrid de Oliveira
4. Sob as lentes de David Lynch: O amor...do cinema
Um conto de fadas sobre um casal apaixonado
perseguido por uma bruxa má. Uma fábula de amor. Uma história de amor temperada com um estranho sabor
amargo,
embalada por muito fogo, cigarros, Elvis Presley, uma alta carga erótica,
personagens bizarros, violência e conversas aparentemente sem sentido algum. Um
espetáculo quente e viscoso. Assim como os outros filmes de Lynch, “Coraçäo Selvagem” não é para qualquer
estômago.
Na abertura do
filme, o espectador se depara com o close de um fósforo que se acende quando os
créditos são apresentados. Em seguida, labaredas de fogo passam a ocupar toda a
tela. As imagens de cores violentas se movimentam ao som de uma música intenso,
apaixonado, anunciando o drama e a tragédia de uma história. O fogo em “Coração
Selvagem” parece dar cobertura, tanto às forças maléficas, quanto às paixões que
envolvem os persongens. Fagulhas.
Os protagonistas são Sailor Ripley (Nicholas Cage) e Lula Fortune (Laura Dern). Logo na primeira cena do filme, Sailor arrebenta a cabeça de um desafeto, com uma violência poucas vezes vista no cinema. Preso por homicídio, ele sai da cadeia e reencontra sua amada, a riquinha-rebelde-ninfomaníaca, para que enfim possam ser felizes longe de todos, para caírem na estrada e ir vivendo a vida sem objetivo algum, além do único propósito de ficarem juntos.
O mocinho é um assassino por quem não conseguimos sentir repulsa e a mocinha está longe de ser mentalmente sã, no entanto encantadora. Nunca um casal esteve tão longe das convenções.
O que o alegre casal não poderia imaginar é que a mãe de Lula, Marietta (Diane Ladd), completamente louca e apaixonada por Sailor, não tem a menor intenção de deixar que eles sejam felizes e, para isso, contrata matadores de aluguel para acabar com seu idílio.
Existe
amor entre Lula e Sailor, e apesar de viverem em um mundo criminoso, são muito
ternos um com o outro. O sexo é central no filme, é a entrada para aspectos
poderosos e místicos da trama, talvez por isso não é apresentado de forma
explícita. Porque as pessoas não querem apenas ver sexo, mas experimentar
emoções que acontecem juntamente com ele.
Através de um
clichê romântico, em que Sailor imita Elvis Presley, o espectador sente a
contradição entre a dor vivida pelo casal e as possibilidades efêmeras de
felicidade que a vida oferece para Lula e Sailor. A figura de Elvis e suas
canções podem representar o que há de mais superficial na sociedade americana,
no entanto, o personagem de Sailor transforma essa percepção, porque ele não
imita o ícone apenas, mas traz para a cena um elemento alegórico: sua jaqueta
de pele de couro, que passou a ser “símbolo de individualidade e da crença na
liberdade pessoal”, conforme a fala do personagem no decorrer do filme.
“Coração Selvagem” é um filme de detalhes. A fumaça está presente em praticamente todas as cenas e é mais do que um vício. Serve de moldura para os delirios dos personagens. Sailor usa uma jaquetade couro de cobra durante toda a película, como uma segunda pele, uma proteção da rebeldia do personagem. Já Lula, intercala seu jeito sexy e sua boca eternamente vermelha (talvez uma referência à outro ícone americano: Marilyn Monroe) com seus sonhos de garotinha permeados por passagens do clássico de Victor Fleming, “O Mágico de Oz”. Ela acredita na estrada de tijolos amarelos e que seus sapatinhos podem levá-la de volta para casa. Uma ilusão que parece não aliviar sua sede de viver intensamente e sua paixão insana por Sailor.
No meio do caminho surgem personagens e cenas formidáveis. O público é brindado com uma Isabella Rossellini desleixada no meio do deserto, Sherylin Fenn morrendo em um acidente de carro e preocupada com o cabelo, e um Willem Dafoe (Bobby Peru) com a dentadura mais asquerosa da história do cinema tentando seduzir Laura Dern (Lula) em um quarto de hotel cheirando a vômito. Todos são absolutamente cativantes. Sim, uma estética desagradável, mas ao mesmo tempo hipnotizante. David Lynch monta um circo cercado de cafonices, mas com toques de originalidade impagáveis. Seu trabalho toca-nos, quer seja pelo fascínio, pelas dúvidas ou pela desorganização que provoca. Mas ninguém lhe pode ser simplesmente indiferente. Uma história de amor que se desenrola em meio à violência do mundo moderno. O filme mostra o lado escuro de um mundo subterrâneo.
As numerosas
alusões ao “O Mágico de Oz” criam uma certa qualidade mágica, que de alguma
forma mistura uma sensação de épico com
uma estranheza real. Oz e seus personagens e cenários são muito bem gravados na
mémoria de todos. Em vários pontos, por exemplo, o diretor mostra imagens de
uma bola de cristal em uma mão cheia de “garras” (as imensas unhas vermelhas),
que conectam Marietta com a Bruxa Malvada do Oeste. Além disso, ele revela uma
bruxa alucinatória voando em sua vassoura ao lado de Lula acompanhando o casal
no carro. E já perto do final do filme, Lynch retrata Sailor imaginando que a
Bruxa Boa Glend, a “Fada Boa” (Shery Lee, a marcante Laura Palmer de sua série
“Twin Peaks”), aparecendo para ele e aconselhando-o:
“Se tem um coração selvagem mesmo, lutará por seus sonhos. Não vire as costas para o amor, Sailor. Não vire as costas para o amor,
Sailor.”
E num rompante,
o nosso (anti) herói volta correndo para os braços de seu amor. Nunca torci
tanto por um casal de ficção como por eles, apaixonados, naturais na atuação. E
como em um conto de fadas contemporâneo, Sailor canta para Lula “Love me
Tender”, de Elvis Presley.
“Coração
Selvagem” é um filme visceral, fantasioso, que nos convida a embarcar em um
sonho, desses que fazem acordar com uma sensação estranha. Um filme sobre o descobrimento do amor no
inferno. E este inferno é a vida moderna, expressados pelos personagens em suas
escolhas estranhas, nos atalhos diversos que as pessoas perseguem.
Super, Ingrid! Muito bom sua crítica. Eu assisti à película, fantástica! Realmente um ótimo filme!
ResponderExcluirSuper beijo pra vc!!